Existem várias formas de se avaliar um país. Desde o Produto Interno Bruto, passando pelas taxas de mortalidade, de natalidade, a densidade populacional, a extensão territorial, até ao recente, e agora muito em voga, Índice de Desenvolvimento Humano, usado pelas Nações Unidas desde 1993, que engloba dimensões como a riqueza do país, a educação e a esperança média de vida. No Butão, ao invés do Produto Interno Bruto, o seu governo utiliza o FIB, o índice que mede a Felicidade Interna Bruta. Eles consideram a felicidade o motor do desenvolvimento de um país e, afinal de contas, a razão fundamental da existência do ser humano.
Num exercício menos arrojado, mas ainda assim quase tão original quanto a iniciativa do governo butanês, Lisa Adams e John Heat, dois reconhecidos professores americanos de literatura e de escrita criativa, procuraram avaliar a sociedade americana através de um elemento também subjectivo, mas ainda assim muito importante para a afirmação cultural e desenvolvimento de qualquer sociedade. Recorrendo aos mais importantes registos de venda dos Estados Unidos, eles procuraram compreender a sociedade americana através dos livros que os americanos leram ou que, pelo menos, compraram, desde a década de 90 até ao ano de 2006.
Quando acabei de ler o livro que produziram com base na extensa pesquisa, não pude deixar de achar tentadora a ideia de um exercício semelhante em relação à sociedade angolana. Achei, realmente, bastante interessante procurar entender a mentalidade do nosso país a partir dos livros que lemos, dos livros que compramos, dos livros que vendemos, dos livros que emprestamos ou trocamos. Mas, enquanto ia avançando nas minhas conjecturas de cabeça, fui chegando a conclusão de que, no nosso caso, um exercício idêntico só iria resultar se a análise fosse feita a partir dos livros que não lemos, pois, pelos livros que lemos, a pesquisa iria falhar por causa da irrelevância da amostra.
Numa época em que o materialismo domina o quotidiano, em que as pessoas são mais, ou menos, valorizadas pela quantidade e qualidade dos bens, em que os carros se apresentam antes dos títulos e dos nomes de família, o exercício lúdico da leitura transformou-se numa coisa bizarra, numa autêntica esquisitice, uma coisa de poucos loucos. Hoje é praticamente um «achado» cruzar com alguém que esteja a ler, ou tenha lido um livro que lemos no último ano. O grupo de pessoas que ainda cultiva o saudável hábito de leitura, sem o querer quase que se transformou numa seita secreta, está cada vez mais difícil encontrá-las. Nesta fase, em que o lucro e o saldo das contas bancárias se apresentam como os principais indicadores do nosso Índice de Consideração Social, vai sendo mais difícil convencer as pessoas, principalmente os jovens, da utilidade, da necessidade, da importância da leitura, e já nos parece normal que, inclusive, estudantes universitários não consigam tirar 2, dos 365 dias do ano, para lerem um livro, ou ao menos um poema disperso.
Contudo, idolatramos o Yannick Bongo como um messias dos novos tempos, só nos falta recomendar as suas letras para os novos manuais da reforma educativa, veneramos o Se-bem como criador de um grande movimento cultural, cantarolamos as músicas do Bruno M, do Puto Prata e do Agre-G, passamo-nos com os sucessos dos Lambas e dos Army Squad, quase entramos em transe com a «Karga» do Big Nelo. Mas se nos perguntarem quem é o Ondjaki, somos capazes de confundir o nome com uma nova técnica chinesa de construção, ou um novo golpe de karatê do Jet Lee.
Hoje oferecer livros deixou mesmo de ser recomendável. Para além do indivíduo correr o risco de passar por lunático ou alienado, pode mesmo perder os amigos ou a namorada que quer conquistar, por ser um inadaptado social. Nas nossas casas, as estantes, ora ornamentadas com obras literárias de referência, hoje encontram-se dominadas por peças de porcelana chinesa, embora poucas autênticas, também por extensas colecções de dvd de filmes de karatê e de terror, grandes filas de garrafas de Chivas e Moet et Chandot, que oferecemos a quem nos visita, quando elas já não estão vazias.
No meio de tudo isso, a grande maioria dos nossos escritores retrai-se, produz pouco, escreve apenas como um hobby, nos intervalos de alguma actividade mais estável, lucrativa e motivadora, porque, para além de a escrita não dar sustento, também não cativa porque não há leitores. E assim, vão aguardando por melhores dias, quando escrever der lucros como os discos de Kú-duro, Semba e de Rap. E na mesma situação se encontram os empreendedores, que, retraídos, não apostam em editoras, nem em livrarias, muito menos em gráficas. Parecem todos parados no semáforo, a espera que a luz verde apareça pra poderem avançar. Na verdade, no que diz respeito à literatura e à leitura, Angola encontra-se hoje numa situação de ponto morto, correndo sérios riscos de passar para uma marcha ré, se nada for feito.
Por isso, se tivéssemos que fazer a avaliação do país a partir dos livros que lemos, ao contrário do que acontece com os domínios político, económico, e mesmo desportivo, o resultado seria catastrófico, se comparado, por exemplo, com Portugal, onde são vendidos anualmente 530 milhões de euros em livros, importados 62 milhões e editados 15 mil títulos, perfazendo uma média de 41 livros por dia, mas que ainda assim tem em execução um Plano Nacional de Leitura para, note-se, aumentar a taxa de literacia. O mesmo acontecia se comparássemos com a África do Sul, onde a produção literária supera a de vários países europeus e já conseguiu nóbeis com J. M. Coetzee e Nadine Gordimer, ou mesmo com a Nigeria, nobelada com Wole Soyinca. É caso pra dizer que um país pesa-se também pelos livros que lê e que vende e não apenas pelos recursos naturais que explora, porque isso demonstra a qualidade das suas gentes.
Na verdade, não há sociedade que se desenvolva, não há potência que se construa, sem cultura, sem ideias, sem pensamento. O livro, se calhar mais do que outros objectos culturais, ajuda a pensar, fomenta o conhecimento, atiça a inteligência. Barack Obama venceu as eleições americanas, entre outros factores, porque leu mais, conhecia mais sobre a América do que os seus adversários. Por isso, é preciso dizer à essa geração, à minha geração, à geração dos nossos filhos, que não se constrói um país apenas com dinheiro, com petróleo, com estradas e pontes, é preciso ensiná-los que a riqueza de um país está na sabedoria do seu povo, que pode constituir um factor de sobrevivência nacional, num mundo em que os poderosos globalizam culturalmente e os mais fracos são globalizados. Não basta, pois, encher as carteiras de dinheiro e os corpos de músculos, seremos sempre um corpo vazio. São as ideias que nos sustentam e somos nós que sustentamos o país.
Não podemos continuar a ignorar que a não leitura é um problema que afecta a sociedade angolana a todos os níveis, mesmo a classe média/alta que vai tentando emergir, os novos empresários, os professores, os estudantes universitários, o mesmo será dizer, os futuros dirigentes do país. E isto deve ser encarado como um problema grave que, entretanto, e respeitando a regra, parece conter em si mesmo a solução, pois, se o problema da não leitura centra-se nos leitores, a solução passa também por eles, por começar a valorizá-los, respeitar e ir ao encontro das suas expectativas.
Por isso, ao invés de se aguardar pelo surgimento de livrarias pra fomentar a leitura, é preciso primeiro que se incentive a leitura, e nem é preciso dizer que a escola deve ser a base, pois incentivando-a estimula-se também a procura de livros, o que vai espicaçar as livrarias, despertar as editoras, atrair os investidores, fazer surgir novas editoras, livrarias, gráficas, promotores, distribuidores e, mais importante, para além de motivar os escritores, vai atrair os novos talentos da escrita, retraídos pela falta de espaço para surgir e crescer.
E estes novos talentos, por sua vez, poderão dar um novo impulso à literatura angolana. Porque, assim como aconteceu com a música, com a revolução do Semba, com o surgimento do Kú-duro, também é verdade que a literatura angolana precisa de novo fôlego, precisa de novos autores que consigam atrair novos leitores, precisa de novas temáticas, que falem da história recente do país e nos possibilitem sonhar o futuro. Precisa de novas abordagens sobre os velhos assuntos, de novos formas de escrever e de contar, mantendo, contudo, aquilo que caracteriza os nossos melhores escritores, a escrita com ideais, a escrita com valores, a escrita com compromisso com o país e, fundamentalmente, com os leitores.
Obs. Comemora-se na próxima semana, a 23 de Abril, o dia mundial do livro, instituído pela Unesco em homenagem a William Shakespeare e Miguel de Cervantes, ambos falecidos neste dia em 1616. Diz a tradição que nesta data, em homenagem a S. Jorge, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa vermelha e em troca recebem um livro. Não precisamos de esperar pela data, hoje, amanhã e sempre são dias perfeitos para comprar, oferecer, trocar, emprestar ou escrever um livro. O país e o mundo vão, de certeza, agradecer o gesto.
Num exercício menos arrojado, mas ainda assim quase tão original quanto a iniciativa do governo butanês, Lisa Adams e John Heat, dois reconhecidos professores americanos de literatura e de escrita criativa, procuraram avaliar a sociedade americana através de um elemento também subjectivo, mas ainda assim muito importante para a afirmação cultural e desenvolvimento de qualquer sociedade. Recorrendo aos mais importantes registos de venda dos Estados Unidos, eles procuraram compreender a sociedade americana através dos livros que os americanos leram ou que, pelo menos, compraram, desde a década de 90 até ao ano de 2006.
Quando acabei de ler o livro que produziram com base na extensa pesquisa, não pude deixar de achar tentadora a ideia de um exercício semelhante em relação à sociedade angolana. Achei, realmente, bastante interessante procurar entender a mentalidade do nosso país a partir dos livros que lemos, dos livros que compramos, dos livros que vendemos, dos livros que emprestamos ou trocamos. Mas, enquanto ia avançando nas minhas conjecturas de cabeça, fui chegando a conclusão de que, no nosso caso, um exercício idêntico só iria resultar se a análise fosse feita a partir dos livros que não lemos, pois, pelos livros que lemos, a pesquisa iria falhar por causa da irrelevância da amostra.
Numa época em que o materialismo domina o quotidiano, em que as pessoas são mais, ou menos, valorizadas pela quantidade e qualidade dos bens, em que os carros se apresentam antes dos títulos e dos nomes de família, o exercício lúdico da leitura transformou-se numa coisa bizarra, numa autêntica esquisitice, uma coisa de poucos loucos. Hoje é praticamente um «achado» cruzar com alguém que esteja a ler, ou tenha lido um livro que lemos no último ano. O grupo de pessoas que ainda cultiva o saudável hábito de leitura, sem o querer quase que se transformou numa seita secreta, está cada vez mais difícil encontrá-las. Nesta fase, em que o lucro e o saldo das contas bancárias se apresentam como os principais indicadores do nosso Índice de Consideração Social, vai sendo mais difícil convencer as pessoas, principalmente os jovens, da utilidade, da necessidade, da importância da leitura, e já nos parece normal que, inclusive, estudantes universitários não consigam tirar 2, dos 365 dias do ano, para lerem um livro, ou ao menos um poema disperso.
Contudo, idolatramos o Yannick Bongo como um messias dos novos tempos, só nos falta recomendar as suas letras para os novos manuais da reforma educativa, veneramos o Se-bem como criador de um grande movimento cultural, cantarolamos as músicas do Bruno M, do Puto Prata e do Agre-G, passamo-nos com os sucessos dos Lambas e dos Army Squad, quase entramos em transe com a «Karga» do Big Nelo. Mas se nos perguntarem quem é o Ondjaki, somos capazes de confundir o nome com uma nova técnica chinesa de construção, ou um novo golpe de karatê do Jet Lee.
Hoje oferecer livros deixou mesmo de ser recomendável. Para além do indivíduo correr o risco de passar por lunático ou alienado, pode mesmo perder os amigos ou a namorada que quer conquistar, por ser um inadaptado social. Nas nossas casas, as estantes, ora ornamentadas com obras literárias de referência, hoje encontram-se dominadas por peças de porcelana chinesa, embora poucas autênticas, também por extensas colecções de dvd de filmes de karatê e de terror, grandes filas de garrafas de Chivas e Moet et Chandot, que oferecemos a quem nos visita, quando elas já não estão vazias.
No meio de tudo isso, a grande maioria dos nossos escritores retrai-se, produz pouco, escreve apenas como um hobby, nos intervalos de alguma actividade mais estável, lucrativa e motivadora, porque, para além de a escrita não dar sustento, também não cativa porque não há leitores. E assim, vão aguardando por melhores dias, quando escrever der lucros como os discos de Kú-duro, Semba e de Rap. E na mesma situação se encontram os empreendedores, que, retraídos, não apostam em editoras, nem em livrarias, muito menos em gráficas. Parecem todos parados no semáforo, a espera que a luz verde apareça pra poderem avançar. Na verdade, no que diz respeito à literatura e à leitura, Angola encontra-se hoje numa situação de ponto morto, correndo sérios riscos de passar para uma marcha ré, se nada for feito.
Por isso, se tivéssemos que fazer a avaliação do país a partir dos livros que lemos, ao contrário do que acontece com os domínios político, económico, e mesmo desportivo, o resultado seria catastrófico, se comparado, por exemplo, com Portugal, onde são vendidos anualmente 530 milhões de euros em livros, importados 62 milhões e editados 15 mil títulos, perfazendo uma média de 41 livros por dia, mas que ainda assim tem em execução um Plano Nacional de Leitura para, note-se, aumentar a taxa de literacia. O mesmo acontecia se comparássemos com a África do Sul, onde a produção literária supera a de vários países europeus e já conseguiu nóbeis com J. M. Coetzee e Nadine Gordimer, ou mesmo com a Nigeria, nobelada com Wole Soyinca. É caso pra dizer que um país pesa-se também pelos livros que lê e que vende e não apenas pelos recursos naturais que explora, porque isso demonstra a qualidade das suas gentes.
Na verdade, não há sociedade que se desenvolva, não há potência que se construa, sem cultura, sem ideias, sem pensamento. O livro, se calhar mais do que outros objectos culturais, ajuda a pensar, fomenta o conhecimento, atiça a inteligência. Barack Obama venceu as eleições americanas, entre outros factores, porque leu mais, conhecia mais sobre a América do que os seus adversários. Por isso, é preciso dizer à essa geração, à minha geração, à geração dos nossos filhos, que não se constrói um país apenas com dinheiro, com petróleo, com estradas e pontes, é preciso ensiná-los que a riqueza de um país está na sabedoria do seu povo, que pode constituir um factor de sobrevivência nacional, num mundo em que os poderosos globalizam culturalmente e os mais fracos são globalizados. Não basta, pois, encher as carteiras de dinheiro e os corpos de músculos, seremos sempre um corpo vazio. São as ideias que nos sustentam e somos nós que sustentamos o país.
Não podemos continuar a ignorar que a não leitura é um problema que afecta a sociedade angolana a todos os níveis, mesmo a classe média/alta que vai tentando emergir, os novos empresários, os professores, os estudantes universitários, o mesmo será dizer, os futuros dirigentes do país. E isto deve ser encarado como um problema grave que, entretanto, e respeitando a regra, parece conter em si mesmo a solução, pois, se o problema da não leitura centra-se nos leitores, a solução passa também por eles, por começar a valorizá-los, respeitar e ir ao encontro das suas expectativas.
Por isso, ao invés de se aguardar pelo surgimento de livrarias pra fomentar a leitura, é preciso primeiro que se incentive a leitura, e nem é preciso dizer que a escola deve ser a base, pois incentivando-a estimula-se também a procura de livros, o que vai espicaçar as livrarias, despertar as editoras, atrair os investidores, fazer surgir novas editoras, livrarias, gráficas, promotores, distribuidores e, mais importante, para além de motivar os escritores, vai atrair os novos talentos da escrita, retraídos pela falta de espaço para surgir e crescer.
E estes novos talentos, por sua vez, poderão dar um novo impulso à literatura angolana. Porque, assim como aconteceu com a música, com a revolução do Semba, com o surgimento do Kú-duro, também é verdade que a literatura angolana precisa de novo fôlego, precisa de novos autores que consigam atrair novos leitores, precisa de novas temáticas, que falem da história recente do país e nos possibilitem sonhar o futuro. Precisa de novas abordagens sobre os velhos assuntos, de novos formas de escrever e de contar, mantendo, contudo, aquilo que caracteriza os nossos melhores escritores, a escrita com ideais, a escrita com valores, a escrita com compromisso com o país e, fundamentalmente, com os leitores.
Obs. Comemora-se na próxima semana, a 23 de Abril, o dia mundial do livro, instituído pela Unesco em homenagem a William Shakespeare e Miguel de Cervantes, ambos falecidos neste dia em 1616. Diz a tradição que nesta data, em homenagem a S. Jorge, os cavaleiros oferecem às suas damas uma rosa vermelha e em troca recebem um livro. Não precisamos de esperar pela data, hoje, amanhã e sempre são dias perfeitos para comprar, oferecer, trocar, emprestar ou escrever um livro. O país e o mundo vão, de certeza, agradecer o gesto.
by Divaldo Martins
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