Luanda - Nasci num tempo em que já não havia nem colonos nem guerra colonial. Havia guerra entre nós, mas colonial já não. A minha infância foi povoada de relatos e vestígios de morte, a minha adolescência vivida entre o medo de ir à tropa e a esperança no fim da guerra. No meio de tudo isso ia à escola e ouvia histórias. O futuro era uma incógnita, por isso falava-se do passado. De um passado preenchido de coragem em busca da liberdade. E aos meus olhos, Agostinho Neto e os seus companheiros eram os heróis da vida real. A guerra colonial acabou sem que eu fizesse um único tiro. A nossa também terminou, e eu nem numa arma peguei. No meio disso nasceram outros heróis que um dia as crianças vão ouvir falar nas escolas e nas ruas. Mas hoje, quando penso na nossa sociedade não consigo libertar-me da sensação de estar amarrado dentro de mim. É verdade que posso ir à Benguela de carro, passar pelo Huambo e chegar até Malange, ainda assim me sinto preso dentro de mim. Todos os dias tenho de repetir para mim mesmo que sou livre, mas nem o som da minha própria voz parece o mesmo. Quando falo sobre isso com os meus amigos, com ex-colegas, com os meus companheiros da vida, todos concordam e se confessam aprisionados também, mas a seguir olham em volta e repetem o sussurro medroso da canção do Waldemar Bastos: «Xê menino, não fala política…», como se não fôssemos ainda livres. Afinal, somos ou não somos livres? Vivemos com medo mas, se pensarmos bem, nem sabemos do que tememos realmente, e acabamos por ter medo de tudo, até dos nossos pensamentos, das nossas ideias mais brilhantes. Numa sociedade livre as pessoas não têm de se lembrar todos os dias que o são, numa sociedade livre a liberdade é uma condição imanente da própria humanidade, é como o respirar, faz parte de si, e os gestos, os actos, as atitudes dos seus membros surgem com naturalidade, exactamente como o respirar. Quando não respiramos morremos, quando não temos liberdade também. Há dias, falando sobre isso com uma amiga, que por acaso está a fazer o curso para a magistratura judicial, ela disse que se sentia da mesma forma, mas que no nosso país «é preciso ter jogo de cintura», no fundo ela queria dizer que é preciso continuar a fingir que somos livres, porque assim pelo menos temos a certeza de que continuamos vivos, recebemos o salário ou um carro no serviço. Não cantamos, mas ao menos dançamos, mesmo sem gostar da música. O melhor é apenas tapar os ouvidos ou fingir que somos surdos. Fiquei horrorizado. Escandalizado. Aliás, vivo escandalizado, principalmente quando penso que, se Agostinho Neto e os seus companheiros usassem o jogo de cintura, provavelmente não estaríamos ainda independentes, e ao invés de ouvirmos as histórias do Ngunga e do Pioneiro Ngangula, estaríamos a ler Os Lusíadas e a cantar Heróis do Mar, invés do Angola Avante da nossa infância. Se calhar, e ainda bem, Neto e os seus companheiros não sabiam dançar e preferiram lutar. Mas a verdade é que no nosso país até a mera intenção de falar se tornou num acto «insensato» de coragem, pensar hoje é uma afronta, e por causa disso estamos a construir uma sociedade dos Prós e dos Contra, onde quem fala subverte o sistema e ameaça a estabilidade, como se das palavras viesse o mal que todos vêm, como se o silêncio fosse capaz de corrigir os erros que sabemos, como se o barulho do nosso grito mudo fosse capaz de abafar as frustrações visíveis em cada olhar calado. O falar só assusta numa sociedade onde não há liberdade. Mais do que assustar, quando não há liberdade, o falar incomoda, e as pessoas vivem caladas, ou falam o que não pensam. Mas a maioria não fala, até aqueles que têm a obrigação histórica e moral de o fazer. Não falam, não porque têm medo de falar, mas porque têm medo de pensar e não querem correr o risco de falar. Silenciamos o pensamento e vivemos calados de boca aberta. E quando penso nisso, penso em todos os heróis da liberdade. Para além de Neto, penso em Martin Luther King, penso em Mandela, recordo Gandhi, e percebo que apenas penso neles porque todos, e cada um deles, lutaram pela mesma liberdade. No fundo eles não são heróis de verdade, são simples homens que recusaram ser animais, quando a maioria se contentava a imitar a vida de um cão acorrentado, que ladra e faz piruetas por um pedaço de pão. Exactamente como Agostinho Neto e os seus companheiros, eles lutaram pela liberdade. Não a liberdade dos sistemas políticos, perdida nos meandros das constituições, mas a liberdade da alma, a liberdade profunda, infinita e ilimitada, a liberdade que faz de nós gente, a única capaz de revelar a excelência de cada um. A minha geração, aqueles que não viram a guerra colonial, mas sentiram o cheiro da morte nas histórias da guerra, que ouviram as histórias do Agostinho Neto, parece contente com a sua existência, mas na verdade não está. A minha geração parece que vive para ver a hora a passar, enquanto inventa um momento, uma festa, um caldo, ou ficar na esquina da rua a fazer o jogo de cintura, enquanto bebe uma cerveja e finge que está contente, mas na verdade não está. Temos apenas medo, e bebemos para afogar os pensamentos, como o poeta que fumava ópio. Fingimos sorrisos mas vivemos a reclamar calados. Calados ninguém nos ouve. A minha geração vive calada de boca aberta, silenciou o pensamento com medo de falar. Uma sociedade que não pensa, porque tem medo de falar, não produz ideias. Uma sociedade que não tem ideias, porque não pensa, nunca atingirá a excelência. Uma sociedade que não permite que os seus membros falem, impede que os seus membros pensem; impedindo que os seus membros pensem, impede que eles atinjam a excelência. Uma sociedade assim nunca irá formar um Barack Obama, um Tony Blair, um Bill Clinton, uma Angela Merkel, um Seretse Kama, um Durão Barroso, nem sequer um Cristiano Ronaldo. É verdade que não são mais tempos de luta, não são mais tempos de forjar heróis, de andar com catanas no Marçal e no Sambizanga, de escrever panfletos às escondidas, de pintar paredes com palavras de ordem, mas também já não são tempos para jogos de cintura. É tempo de esgrimir ideias, é tempo de aprendermos a ser livres, de aprendermos a respeitar a liberdade, a nossa e a dos outros, para permitir que cada um consiga libertar a excelência escondida no seu medo. Numa sociedade onde as pessoas não se sentem livres não existe excelência, com excepção da que vem amarrada atrás dos cargos. Divaldo Martins |
terça-feira, 6 de outubro de 2009
O tempo dos Surdos e dos Mudos
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1 comentário:
Rico testo. Simples, verdadadeiro e objectivo.e quando isto acontece: Sem comentario
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